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Para especialistas, a queda registrada em todo o Brasil tem a crise econômica como principal pano de fundo
Pensando nas situações de emergência, muitos brasileiros ainda se esforçam para depositar boa parte de seus salários em planos privados ou coletivos. Porém, com altos valores, está cada dia mais difícil manter essa despesa.
Somente no Espírito Santo, quase 50 mil usuários abriram mão da assistência médica paga entre meados de 2015 e de 2017 e vão ter que ser atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em contrapartida, o número de queixas diante da qualidade dos serviços só aumenta.
“O jeito foi procurar um plano mais barato. Contar só com a saúde pública hoje é difícil, até porque na minha idade temos que estar sempre no médico. Preciso de acompanhamento com cardiologista e ortopedista”
— Eleonora Assis Santana 67 anos, pensionista
Em agosto 2015, o Estado registrava 1.141.124 beneficiários de planos de saúde, de acordo com os dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O número caiu para 1.103.885 em agosto de 2016 e continuou declinando durante todo o primeiro semestre deste ano, fechando o mês de julho com um total de 1.093.535 usuários.
Para especialistas, a queda registrada em todo o Brasil tem a crise econômica como principal pano de fundo. O país, que acumulava 50 milhões de beneficiários de planos de saúde em agosto de 2015, perdeu mais de 2,6 milhões de usuários nos dois anos seguintes.
Conforme explica o médico de família e professor da UVV, Leonardo Fontenelle, cerca de dois terços dos planos de saúde são de origem empresarial. Por isso, ao perderem o emprego, os usuários perdem o acesso à saúde suplementar.
Somente no Espírito Santo, quase 50 mil usuários abriram mão da assistência médica paga entre meados de 2015 e de 2017 e vão ter que ser atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS)
“Nestes casos, são pessoas mais saudáveis e que gastam menos dinheiro com planos por receberem auxílio das empresas. Por isso, o desemprego é o fator que mais gera o desligamento e não a insatisfação”, resume Leonardo.
Já o conselheiro do Conselho Regional de Economia do Estado (Corecon-ES), Juliano César Gomes, acrescenta que a queda de 6,2% de usuários de planos entre dezembro de 2014 e junho de 2017 praticamente acompanhou a retração do mercado de trabalho neste período.
Mais caros
Por outro lado, é nos planos privados – que representam um quinto do total – que tanto a insatisfação em relação aos serviços oferecidos, quanto os altos valores cobrados tornam-se os principais motivos de desistências. Neste campo, predominam os idosos, faixa etária que mais necessita de cuidados e que acaba pagando mais caro por isso. Segundo Leonardo, não são raros os casos de pessoas que recorrem pela primeira vez ao SUS após os 60 anos.
A taxa máxima de reajustes concedida pela ANS entre maio de 2017 e abril de 2018 é de 13,55%. A agência também ressalta que uma resolução de 2003 estabelece que o valor fixado para a última faixa etária (a partir dos 59 anos) não pode ser seis vezes superior ao da primeira faixa (de zero a 18 anos).
Mas, ainda que as regras sejam seguidas, a elevação dos custos pesa muito no fim do mês. Para Vera Lúcia Nicoletti Merlo, eles se tornaram impossíveis desde fevereiro deste ano, quando completou 59 anos. Com a notícia de aumento de R$ 840 para R$ 1016 ela, que permaneceu no plano por 12 anos, precisou se desligar e procurar outro mais em conta.
“Eu faço acompanhamento com ortopedista, cardiologista e ginecologista. Preciso do plano porque é muito difícil depender do SUS. Mas, com essa mensalidade que iam cobrar, daria para comprar um carro no final do ano”, reclama.
Situção semelhante foi vivida pela pensionista Eleonora Assis Santana, de 67 anos. “Por dois anos tentei manter um plano de saúde, mas o preço era alto”, lembra ela, que também reclama da alta rotatividade de profissionais. “Às vezes eu me consultava dois ou três meses com o médico e ele saía. Aí eu tinha que começar tudo de novo”.
Assim como Vera, Eleonora também buscou um plano mais acessível, embora a mensalidade ainda seja alta. “Contar com a saúde pública é difícil, até porque na minha idade temos que estar sempre no médico. Preciso de acompanhamento com cardiologista e ortopedista”, justifica.
Análise – Reajuste muito acima da inflação
Juliano César Gomes, economista
Enquanto a inflação medida pelo IPCA acumulou uma variação de 22,1% entre jun/2014 e jun/2017, o percentual de reajuste máximo autorizado pela ANS acumulou uma alta de 46,4% no período. Isso pode ter contribuído para a redução dos beneficiários individuais, bem como seu reingresso, já que a renda média dos capixabas praticamente acompanhou a inflação.
Ao calcular o índice de reajuste dos planos, a ANS considera uma cesta de produtos e serviços distinta da utilizada pelo IBGE. Esse descompasso gera um custo elevado para o trabalhador. Em casos de redução na renda familiar, ele acaba optando por priorizar o consumo de outros serviços mais essenciais, principalmente por ter acesso à saúde pública.
2017 teve quase mil queixas, mas número de insatisfeitos é maior
Enquanto em todo o ano passado a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) registrou 1.470 reclamações envolvendo problemas com cobertura, agendamento de consultas e mau atendimento por parte dos planos de saúde no Estado, somente até julho deste ano, o número já chegava a 967. Mas esta soma poderia ser bem maior, caso todos os usuários insatisfeitos buscassem seus direitos.
É isso o que explica o médico e professor da UVV, Leonardo Fontenelle. “Como a própria ANS admite, uma das dificuldades na avaliação das operadoras de planos de saúde é o sub-registro de reclamações, tendo em vista que muitos beneficiários não demandam a agência.”
A mesma análise é feita pela diretora do Procon estadual, Denize Izaita Pinto. O órgão recebeu 736 reclamações no ano passado e 393 este ano referentes ao tema, o que para Denize, está longe de refletir a realidade.
“O que chega são mais questões administrativas, como alterações de contratos e descredenciamentos de clínicas sem que outras sejam abertas no lugar. Mas problemas relativos a cobertura, que geram maiores demandas no judiciário, chegam pouco”, avalia.
Segundo Denize, as ofertas de alguns planos são completas no papel, mas não na realidade. “Isso é apenas uma formalidade, pois muitos usuários se queixam da morosidade ou da negativa das respostas por parte das operadoras”.
Embora a recomendação seja para que os clientes relatem suas queixas às ouvidorias, à ANS e aos órgãos de defesa do consumidor, Denize afirma que muitos beneficiários desistem de procurar seus direitos e optam por utilizar o Sistema Único de Saúde (SUS) quando têm um procedimento negado. “É mais fácil acionar o SUS através do Judicário do que o próprio plano”, lamenta.
A lentidão dos processos também faz com que os usuários desistam de recorrer. “Há pessoas que acabam pagando por um procedimento, além de pagar o próprio plano”, acrescenta a defensora pública Samantha Pires Coelho.
Há ainda quem decide esperar por uma resposta. A empresária Raquel Cunha, por exemplo, aguarda há três meses pela autorização de um exame da tireoide. A princípio, o exame, que serviria para avaliar uma alteração em sua garganta, seria liberado em cinco dias.
“Depois o prazo passou para uma semana e meia e até hoje está esse enrolo. Em 10 anos nesse plano, quase nunca vou ao médico e quando precisei aconteceu isso”, protesta.
Negativas
Erros administrativos e negativas de realização exames e procedimentos estão entre as causas de maior reclamação que chegam até o advogado João Vitor Guimarães Vaz.
Atuando há nove anos nesta área, João Vitor afirma que em grande parte dos casos é o cliente quem tem razão. Até mesmo procedimentos de urgência, que não podem ser negados no prazo de carência, costumam ser recusados. Cirurgias bariátricas também são rejeitadas – apesar dos laudos médicos que atestem sua necessidade – sob a alegação de razões estéticas.
Para Gilmar Aristides Demuner, 56, a situação foi mais complicada. Ele, o filho e a esposa eram usuários de um plano de saúde através de uma cooperativa. Porém, o plano decidiu se decredenciar e deu prazo de dois meses para o fim do contrato. Além de não ter recebido nenhuma proposta de plano individual (o que é obrigatório), Gilmar se queixa de não ter conseguido autorização para fazer nenhum dos exames solicitados pelos médicos neste período.
“Tenho um problema nos ombros, minha esposa teve câncer e meu filho tinha uma colonoscopia para fazer. Quando reclamei, me mandaram entrar na Justiça”.
Punição mais rígida para plano que não resolver problemas
Uma nova norma proposta pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) pretende endurecer a fiscalização dos planos de saúde, pressionando-os a solucionar os problemas apontados pelos usuários.
Além de detalhar mais as reclamações, a resolução normativa, que está em consulta pública, pretende fazer uma classificação das operadoras em cinco faixas de desempenho. Quanto pior a faixa, mais rigorosas se tornam as punições adotadas, que incluem a aplicação de multas. Estas, por sua vez, serão definidas de forma proporcional, conforme a gravidade do problema.
“O novo modelo reunirá em uma única norma resoluções que tratam dos procedimentos das ações fiscalizatórias e das penalidades. Ou seja, teremos um instrumento único, um Código de Infrações da Saúde Suplementar”, destaca Simone Sanches Freire, diretora de Fiscalização da ANS.
“Muitos consumidores se queixam da morosidade das respostas ou da negativa por parte das operadoras”
— Denize Izaita Pinto, diretora do Procon
A defensora pública estadual Samantha Pires Coelho, que lida com demandas de beneficiários no Núcleo de Solução Judicial e Triagem de Vila Velha, espera que o maior rigor obrigue as operadoras a cumprir com procedimentos básicos que hoje não são cumpridos.
“Elas se negam, por exemplo, a emitir certidões de negação de exames e procedimentos. Não dão nada por escrito, o que é previsto por lei. Pelo direito do consumidor, todas as informações devem ser prestadas. Espero que a partir do momento em que o prejuízo delas se torne maior, as soluções sejam encontradas mais facilmente”, afirma.
Medo de demissão eleva procura por consultas
A Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) argumenta que embora o número de beneficiários tenha caído, o volume de procedimentos realizados continua a subir. Com medo de demissão, em função da instabilidade econômica, usuários a busca auxílio médico mais intensamente.
“A mesma dinâmica ocorre com os recém-desempregados, que tendem a fazer usufruto mais acentuado do plano logo após seu desligamento, enquanto o benefício ainda lhe está disponível”, explica a associação.
A Abramge afirma que uma pesquisa recém divulgada pelo Ibope revela que 80% dos beneficiários estão satisfeitos com seus planos.
“Um levantamento do Sindec (Sistema Nacional de Informações de Defesa do Consumidor) aponta que houve 35.318 notificações dentre os cerca de 1,4 bilhão de atendimentos, o que equivale a uma reclamação para cada 40 mil procedimentos”, ressalta.
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